Um
filme sobre Irmã Dulce? Quando a questão foi colocada, pensei logo nas
vantagens e nos riscos. Vantagens: Jesus disse que a luz precisa ser colocada
no alto, para que ilumine o ambiente em que está. Ora, a vida de Irmã Dulce é
rica de ensinamentos. Pequena e frágil, sensível à miséria humana, não procurou
desculpas para ficar recolhida a seu convento.Pelo contrário, foi à luta,
dedicou-se aos pobres e doentes e multiplicou-se em pessoas que podiam
ajudá-la. Riscos: o valor da vida de Irmã Dulce se baseia especialmente na sua
simplicidade. Um filme não iria idealizar essa vida, romanceá-la ou, mesmo,
esvaziá-la? Lembrei-me logo de outra religiosa, também pequena, frágil e
doente: Bernadete de Soubirous, vidente de Lourdes (1858). Pouco antes de seu
falecimento, alguém lhe perguntou: “Quando se escrever sobre os acontecimentos
da Gruta de Lourdes, o que você gostaria que fosse escrito?” Ela respondeu: “A
verdade. Somente a verdade”.
A verdade se impõe; a verdade ilumina; a verdade
liberta. Um filme sobre Irmã Dulce só teria sentido se fosse expressão da
verdade de sua vida. Não fosse verdadeiro, os primeiros a criticá-lo seriam os
que a conheceram. É comum encontrarmos pessoas que fazem um comentário sobre um
encontro que tiveram com Irmã Dulce; com a descrição da reação que ela teve
diante de um problema; com a recordação de uma resposta sua, quando diante de
um desafio. Vê-se, pois, que um filme sobre ela não poderia ser uma exaltação
gratuita nem, muito menos, uma caricatura de sua vida. Por isso, as Obras
Sociais de Irmã Dulce colocaram como exigência, para a concessão da licença
para a produção de um filme sobre a vida de Irmã Dulce, que o roteiro fosse
previamente aprovado por seus responsáveis. Afinal, não poderia prevalecer a
chamada “lógica do mercado”, que prioriza o que agrada mais, o que vende
melhor, o que causa maior sucesso.
É verdade que, com isso, os problemas não estavam
resolvidos. Outras questões nasciam: como traduzir na linguagem do cinema a
riqueza dos detalhes da vida de Irmã Dulce? Se a intenção fosse fazer um
documentário, tudo seria mais fácil. Mas como apresentar o olhar de Deus sobre
sua vida? Tarefa difícil, mas que não podia ser ignorada, especialmente desde
que a Igreja, reconhecendo a heroicidade das virtudes dessa religiosa, a
beatificou. Como esquecer a tarde memorável do dia 22 de maio de 2011, quando
se tornou oficial uma certeza que já estava arraigada no coração dos baianos: a
de que o testemunho do “Anjo Bom da Bahia” poderia ser levado em consideração
por quem quisesse seguir Jesus Cristo, particularmente em sua dedicação por
aqueles que a sociedade costuma ignorar?
Os desafios e as preocupações diante da perspectiva
do filme “Irmã Dulce” não paravam por aí. Mas era preciso avançar. Assim,
algumas convicções se impuseram: o que fosse retratado deveria ser verdadeiro;
aceitar-se que nenhum filme sobre Irmã Dulce seria completo e lembrar que uma
obra artística é a expressão de um ponto de vista. Tomadas as decisões, as
filmagens começaram.
Agora, a obra está pronta. Mais alguns dias e o filme
“Irmã Dulce” estará nas telas de cinema de todo o Brasil. O que dizer dele?
Estou feliz com o resultado. Sinto-me livre para dizer mais: o filme superou
minhas expectativas. “Irmã Dulce” é um filme que eu gostaria de ter feito, se
fosse cineasta.
Cumprimento aqui todos os que trabalharam em função
desse filme. Não destaco nomes, para não cometer injustiças. Numa obra como
essa, de muitas mãos, os aplausos devem ser para todos. Não sei o que a própria
Irmã Dulce diria, se visse esse filme sobre a sua vida. É possível, até, que
ela saísse na metade da exibição: vendo determinada cena, possivelmente se
lembraria de algum pedido que um pobre lhe fez no dia anterior, de um rosto que
ela viu no corredor de seu hospital (“Será que aquela senhora já foi
atendida?…”) ou de um médico com quem ela precisava falar com urgência. Que o
filme esperasse; quem precisa de alguma ajuda, não pode esperar…
Dom
Murilo S.R. Krieger
Arcebispo
de São Salvador da Bahia (BA) e Primaz do Brasil
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