Na
semana que passou, o mundo foi abalado pelo assassinato de 12 pessoas na sede
do jornal satírico Charlie Hebdo, de Paris; seguiram-se mais mortes de pessoas
inocentes e também dos autores dos assassinatos da sede do citado jornal. A
questão continua a render e, agora, em várias partes do mundo islâmico, a ira
volta-se contra os cristãos e seus templos que, aliás, também foram alvo das
caricaturas envenenadas do Charlie...
Quem
matou os jornalistas achou que estava vingando a honra de Maomé e a fé dos
muçulmanos, que teriam sido ultrajadas pelas publicações do Charlie Hebdo; os
responsáveis pelo Charlie, por sua vez, acharam que estavam exercendo seu
“sagrado” direito de liberdade de expressão. Seguiu-se uma manifestação
colossal na França e em outros países em favor da liberdade de imprensa e de
expressão e de imprensa.
A
questão toda merece uma reflexão serena, nem sempre possível no calor dos
acontecimentos. Até onde vai a liberdade de expressão e de imprensa? É
irrestrita? Até onde vai a própria liberdade humana? É certo, em nome de Deus,
fazer violência e matar quem nos ofende ou contradiz as nossas ideias e
convicções religiosas? É certo, em nome da liberdade de imprensa, atacar e
ridicularizar as convicções mais sagradas das pessoas?
A
liberdade foi e continua a ser uma das questões mais complexas da existência
humana. Ela é uma capacidade que Deus deu ao ser humano e que lhe confere uma
dignidade superior à dos outros seres deste mundo. Pela liberdade, o homem é
capaz de fazer escolhas autônomas, para o bem e para o mal. O próprio Deus
respeita a liberdade da criatura humana, mesmo quando não aprova suas escolhas.
O
homem nem sempre consegue lidar com a própria liberdade; o uso que dela faz não
é indiferente e as suas escolhas também levam a consequências contrastantes
entre si. Por isso, dizemos que há um bom uso e um mau uso da liberdade. O uso
é bom quando faz com que seu exercício leve ao verdadeiro objetivo da existência
humana: a vida digna, o respeito ao próximo, a paz da consciência, o mérito e a
glória do Criador, que deu a liberdade ao homem.
Há
limites para a liberdade? Certo que sim, pois nossa liberdade não é ilimitada.
Nossa liberdade pessoal tem seu limite na liberdade e na dignidade do próximo.
Nossas próprias escolhas implicam num limite à liberdade; quem escolhe a,
renuncia a escolher b. As normas comuns do convívio põem limites à liberdade
individual, em vista de um bem maior. Mas esse limite da liberdade de pensar,
dizer, decidir e fazer deve ser posto pelo próprio sujeito da liberdade, ou
assumido livremente por ele. E nisso está o mérito ou demérito no uso da
liberdade: somos responsáveis pelas nossas escolhas e assumimos as
consequências de nossas decisões.
Até
onde vai a liberdade de expressão? Não é preciso colocar um limite externo: o
limite deve ser posto pela própria pessoa, no exercício autônomo de sua
liberdade. Assim, tanto os jornalistas do Charlie Hebdo quanto os seus
assassinos respondem pelos seus atos. Não é o fato de serem livres, que todas
as suas ações são boas. O julgamento sobre o bom ou mau uso da liberdade
depende dos padrões éticos, culturais e morais da sociedade.
Se,
de um lado, é absolutamente inaceitável praticar violência ou matar o próximo
em nome de Deus, ou para vingar supostas ofensas, também não é aceitável que,
em nome da liberdade pessoal, se humilhe, desrespeite e despreze o próximo. O
senso comum condena a violência verbal, os preconceitos raciais, sociais e
religiosos, a ridicularização e o bullying; fazer troça dos humilhados e
feridos, não desperta apreço para quem o pratica... O que dizer da perseguição,
desprezo e violência por causa das convicções religiosas, que são algo sagrado
e muito interior à consciência das pessoas?
A
questão não é colocar limites externos à liberdade, mas recuperar algo muito
simples e fundamental para a convivência: o senso do respeito na relação com as
pessoas. Trata-se de um “sensor” não ajustável com o controle remoto, mas
regulado pela fórmula bem simples e já conhecida desde tempos remotos: “não
faças aos outros o que não gostarias que fizessem a ti”. Sem esse regulador
delicado, adquirido pela educação, todas as tempestades verbais e discussões
acaloradas sobre a liberdade de expressão não levam a nenhuma solução boa.
Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo de São Paulo
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