Em abril passado,
transcorreu o 50º aniversário da encíclica Pacem in Terris, do papa João XXIII.
Relendo-a, constato a luminosa atualidade de seus ensinamentos, que mereceriam
ser tomados em atenta consideração ainda em nossos dias, marcados por graves crises,
guerras, violência difusa e descontrolada, que causam dor, sofrimento e morte.
A encíclica foi
publicada em 1963, num momento delicado da guerra fria que, na crise da Baía
dos Porcos, quase acabou em guerra aberta. O Papa já tinha intervindo com suas
Mensagens nas situações de guerra em curso naquela época; com sua Encíclica,
ele contribuiu especialmente para despertar uma consciência mais atenta à
superação dos conflitos pelo diálogo e para fomentar um estado de ânimo
favorável à paz no mundo inteiro.
João XXIII, já
bastante doente, fez seu apelo angustiado partindo das convicções da fé da
Igreja, em harmonia com a lei natural e os anseios mais profundos dos povos.
Afirmou que o bem da paz não é obra do acaso, nem pode depender apenas de
movimentos espontâneos da sociedade, mas precisa ser buscado de forma
organizada e com esforço sincero pelos governos de todos os povos e Comunidades
políticas.
Mais que à lógica
diplomática, o Papa fez apelo à consciência, ao bom senso e à lógica do
coração. Isso explica, em boa parte, a grande acolhida e repercussão da
Encíclica. “A paz continua apenas um ruído inócuo de palavras, se não for
baseada na verdade, construída sobre a justiça, vivificada e integrada pela
caridade e posta em prática na liberdade” (n. 60).
Ela só pode ser
conseguida no pleno respeito à boa ordem querida por Deus, e que se traduz,
sobretudo, no pleno respeito a todo ser humano e à sua inalienável dignidade.
Por isso, o Papa tratou longamente dos direitos de toda pessoa e de seus
deveres no convívio social; e manifestou seu apreço pela Declaração Universal
dos Direitos Humanos, da ONU.
A encíclica
também trata das relações entre as pessoas e da natureza e finalidade dos
Poderes públicos, que consiste em promover e assegurar o bem comum. O primeiro
“bem comum” é a tutela da própria pessoa humana e a promoção de seu
desenvolvimento integral. Lições ainda não bem aprendidas e dignas de serem
retomadas.
Parte consistente
do texto refere-se às relações entre as Comunidades políticas, que também são
sujeitos de direitos e deveres a serem devidamente regulados de acordo com
critérios de verdade, justiça e solidariedade. E não falta a reflexão sobre os
desequilíbrios econômicos, o drama dos refugiados políticos e sobre a perigosa
corrida armamentista, coisas essas que colocam a paz em risco.
O Pontífice pede
que os contenciosos entre as nações sejam resolvidos de maneira dialogada e
negociada, e não pela força das armas. Esse apelo, constante na voz dos romanos
Pontífices, também já foi feito pelo recém-eleito papa Francisco, diante dos
vários conflitos em curso na atualidade.
Numa visão de
futuro, antecipando-se às questões desencadeadas de maneira mais aguda pela
globalização, João XXIII tratou das relações dos indivíduos e das Comunidades
políticas com a Comunidade mundial: “atualmente, nenhuma Comunidade política
está em condições de assegurar os seus próprios interesses e de se desenvolver,
fechando-se em si mesma, pois o nível de sua prosperidade e do seu desenvolvimento
são um reflexo e um componente do grau de prosperidade e desenvolvimento de
todas as outras Comunidades políticas” (n. 43). A crise econômica atual,
persistente e preocupante, sobretudo na Europa, confirma plenamente essas
afirmações.
Em vista dessa
interdependência entre as Comunidades políticas, o Papa aponta para a
necessidade de se constituírem “Poderes públicos mundiais”, competentes para
zelarem pelo bem comum da inteira comunidade humana. Essa preocupação do Papa,
como da Doutrina Social da Igreja, em geral, parte dos laços comuns que unem
todos os membros da família humana, da solidariedade universal daí decorrente e
da necessária superação da busca particularista do bem dos povos.
Por isso, João
XXIII já constatava a insuficiência da organização tradicional da autoridade
política, incapaz de assegurar o bem comum universal. A Organização das Nações
Unidas, criada em 1948, ainda era jovem, mas já se mostrava impotente para
assegurar a paz e o desenvolvimento humano integral dos povos. “O bem comum universal
defronta-se agora com problemas de dimensões mundiais, que não podem ser
resolvidos adequadamente, a não ser por Poderes públicos que tenham amplidão,
estrutura e meios com as mesmas proporções; esses deveriam ser capazes de agir
de modo eficiente no plano mundial. Portanto, a própria ordem moral requer que
tais Poderes sejam instituídos” (n. 45).
Hoje tem-se a
percepção mais clara da urgência de uma reforma da ONU e de outros Organismos
internacionais, que se mostram ineficientes ou até incapazes de cumprir seus
objetivos; tendo sido pensados para um contexto histórico do passado, eles já
não dão conta das situações novas, que marcam o mundo sempre mais globalizado.
Desse
descompasso, aproveitam-se, não raro, organizações danosas ao bem comum, como
as redes do crime organizado, a corrupção, ou os crimes financeiros. Nos
diversos países, a violência difusa, que fere a paz e tem dimensões
preocupantes também no Brasil, está relacionada, muitas vezes, com a
globalização da criminalidade; nenhum governo local conseguirá controlar
sozinho esse fenômeno, mas é necessária uma conjugação global de esforços.
E o Papa conclui:
“cabe todos os homens de boa vontade a tarefa imensa de recompor as relações da
convivência na verdade, na justiça, no amor e na liberdade: entre as pessoas,
os cidadãos e as respectivas Comunidades políticas...” (n. 59). Tarefa sempre
atual.
Cardeal
Odilo Pedro Scherer
Arcebispo
de São Paulo
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