Na semana que
passou, fomos todos testemunhas de um momento histórico na vida da Igreja: a
renúncia de um papa à missão de Sucessor do Apóstolo Pedro. O fato teve uma
cobertura imensa por parte da imprensa, com olhares, sentimentos e reações
variadas e interpretações igualmente muito diversas.
Tive a impressão
de que, felizmente, quem reagiu com maior tranquilidade foi mesmo o povo
católico; provavelmente porque sua ligação com a Igreja, sua fé e vivência da
vida eclesial lhe deram uma chave de compreensão serena da decisão do Papa e de
aceitação confiante das palavras do próprio Bento 16 sobre sua renúncia: a
idade e as forças que já não lhe permitiam mais servir à Igreja como seria
preciso; por isso, após examinar sua consciência repetidas vezes diante de Deus
e de rezar, tinha ele chegado à conclusão que a renúncia era uma decisão
adequada. Era, por isso mesmo, um ato de amor, de fidelidade e de serviço à
Igreja.
Para muitos,
porém, faltando esse olhar de fé, a renúncia do Papa tinha que ser enquadrada
nos padrões correntes das renúncias dos chefes ou personalidades políticas que,
geralmente, renunciam pressionados por circunstâncias adversas de luta de
poder, por fatos de corrupção ou de mau exercício do poder... No entanto, a
pretensão de enquadrar a renúncia do Papa nesse esquema de interpretação não
leva em conta nem a real situação do papa Bento 16, nem a realidade da própria
Igreja. A análise e a avaliação dos fatos da vida eclesial, sem levar em conta
a sua dimensão de fé, serão sempre insuficientes, senão inteiramente
desfocadas. No dia 27 de fevereiro, quarta-feira, quando Bento 16 realizou a
sua última audiência pública na praça de São Pedro e adjacências, debaixo do
sol invernal de Roma, havia cerca de 150 mil pessoas, que manifestavam de
muitos modos, mas sempre de maneira serena, seu carinho e sua gratidão ao Papa;
várias inscrições diziam: “Papa, estamos contigo! Não estás sozinho!”
Na sua alocução,
o Papa falou da Igreja, como tem feito repetidas vezes desde que comunicou sua
renúncia. Destacou Bento 16 que a Igreja não está sozinha, nem a “barca de
Pedro” estava abandonada a si mesma; lembrou que o Supremo Pastor, Jesus
Cristo, está à frente do seu rebanho e não o abandona jamais; que a Igreja,
mesmo agitada por tempestades, como a barca de Pedro, pode contar com Jesus a
bordo, que continua a acalmar os mares e a dar força e coragem aos discípulos,
para continuarem a remar: “eu estarei convosco todos os dias, até o fim dos
tempos!”.
Olhando para a
praça, que o aplaudia frequentes vezes, Bento 16 afirmou, apontado com as mãos
para a multidão: “a Igreja está viva!”. É a mesma Igreja que se reúne em torno
dos sacerdotes e bispos no mundo inteiro, que ouve a Palavra de Deus, celebra a
Eucaristia e se faz presente ao lado dos pobres e sofredores por toda parte. A
Igreja está viva e por isso a vemos junto dos mais abandonados da sociedade,
dos que mais sofrem, dos que têm sua dignidade menos reconhecida, daqueles que
nada contam para o mundo da eficiência, da força, do poder e da autoafirmação,
levando conforto e esperança...
No Ano da Fé, a
providência de Deus está nos dando oportunidades preciosas para aprofundarmos
nossa fé na Igreja e para que nosso amor a ela cresça e amadureça. Isso não nos
impede de ver as falhas humanas também presentes na Igreja e que dependem de
cada um de nós; essas falhas devem ser corrigidas pelo respeito e amor que
temos à Igreja. A Igreja, em cada um de seus membros, instituições e
organizações, precisa, de fato, viver um constante processo de conversão e
crescimento na fidelidade a Jesus Cristo e à missão recebida dele. Porém, a
Igreja é mais, muito mais do que nossas falhas e limites.
No encontro de
despedida do Colégio Cardinalício, no dia 28 de fevereiro, Bento 16 voltou
novamente ao tema. Recordou algo ouvido do pensador católico Romano Guardini,
que conheceu em sua juventude: a Igreja não é simplesmente um projeto humano,
feito e montado num escritório, para ser levado à aplicação prática: ela é uma
realidade viva; é obra do Espírito Santo, que a renova, faz florescer e
produzir frutos. E concluiu: “a Igreja revive sempre de novo no coração das
pessoas”.
Publicado em O SÃO PAULO, ed. de 05.03.2013
Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo de São Paulo